quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Explicando

Por que é que a falta de esperança não dá as mãos pras minhas vontades? É fácil: leve-as pra passear num parque ensolarado, com cheiro de planta molhada pela chuva, e sussure no ouvido delas, com a ternura de uma mãe explicando ao filho a razão de uma negativa qualquer: "vocês não podem vingar, vão precisar partir, ficar longe um tempo, um tempo que eu espero que seja curto. Só o tempo suficiente pra que eu, Esperança, possa renascer de novo, revivificada pela minha congênita teimosia e por essa minha preferência extravagante pelo Amor".

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Acalanto

Corre calma, severina noite
De leve no lençol que te tateia a pele fina
Pedras sonhando pó na mina
Pedras sonhando com britadeiras
Cada ser tem sonhos à sua maneira
Cada ser tem sonhos à sua maneira

Corre alta, severina noite
No ronco da cidade, uma janela assim acesa
Eu respiro o teu desejo
Chama no pavio da lamparina
Sombra no lençol que te tateia a pele fina
Sombra no lençol que te tateia a pele fina

Ali, tão sempre perto, e não me vendo
Ali sinto tua alma a flutuar do corpo
Teus olhos se movendo, sem se abrir
Ali, tão certo e justo e só te sendo
Absinto-me de ti, mas sempre vivo
Meus olhos te movendo sem te abrir

Corre solta suassuna noite
Tocaia de animal que acompanha a sua presa
Escravo da sua beleza
Daqui a pouco o dia vai querer raiar
Daqui a pouco o dia vai querer raiar...

(Noite Severina - Lula Queiroga / Pedro Luís)

Minha alma agradece


"Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências."


Mia Couto - escritor moçambicano, por quem me apaixonei à primeira lida. Foi impossível só gostar. Obrigada por trazer esse pedacinho de África Austral, cheio de mar, pra dentro da minha alma.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Vai, nuvem ...

Pela intensidade do Sol, pela homogeneidade desse céu azulzinho, eu já desconfiava que você tava passando. É da natureza das nuvens. Ficar em suspensão, ir se desmontando, desconfigurando-se na sua própria dispersão. Nuvem linda, com os olhos mais sonolentos que eu já vi! Olhos repletos da insônia de quem tá vagando, vagando, sem conseguir parar. Foi pouco, mas foi bom esse pedaço de tempo que você esteve circundando a minha superfície rasa. Acordar te procurando, mais do que preencher qualquer extensão indefinida de mim, esvaziava o meu vazio. Ufa! Eu sou mesmo uma criança boba, querendo brincar com nuvens. Mas eu não resisti. Eu não quis resistir. Igualzinho nos desenhos dos meus livros da terceira série, eu queria ser um anjo dourado deitado na nuvenzinha macia. E essa sensação de te querer era tão maior do que o medo de não poder. Mas, de repente, me dei conta de que não dava mais pra brincar disso. Aliás, me dei conta de que não conheço as regras dessa brincadeira. Fui traída pelo meu desejo seguro, pelo meu sonho desperto. Não fui traída por você, nuvem branca, que nunca me prometeu nada. Não prometeu me levar contigo nesses teus passeios infindáveis. Não prometeu me levar pra conhecer os teus caminhos secretos. Eu queria tanto! Mas você foi uma nuvem querida e sincera, e isso só aumenta o meu lamento. Não tive tempo de te decifrar, nuvem turva, que eu só consegui tocar com os lábios molhados e o corpo quente.
*
Hoje, uma nuvem escura veio visitar o meu peito. Tá fazendo chover aqui dentro, transbordando por onde pode. Mas logo, logo, passa. É da natureza das nuvens.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

ON / OFF

Algum botão ligou sozinho aqui dentro. Eu tinha programado pra não ficar triste. Tinha programado pra entender e aceitar. Tinha até programado um samba exaltação de trilha sonora. Selecionei data e hora e apertei CONFIRMA. Quando vi o sol de manhã, achei que eu tinha feito tudo certo. Tava tudo certo mesmo. Caramba, como eu sou esperta! Eu nem li o manual e fiz tudo isso! Ôpa ... que peso é esse? Essa vontade de chorar, de ser criança de novo e abraçar minha avó pela saia ... Alguma coisa fechou minha garganta. Esse monte de gente aqui em volta tão mal colocada ... Eu tão fora daqui, tão dentro de mim. Seca, lágrima! Daqui a pouco todo mundo vai querer saber que dança é essa que você desenvolve no meu rosto. E eu não tenho nada pra explicar. Eu fiz tudo certo, sem o manual, mas eu tinha certeza! Não é culpa minha. Tá tão pesado e eu sou tão tola, tão infantil, tão carente! Eu até escrevi tin tin por tin tin todos os passos: por que fazer, como fazer, resultados esperados. Quem desprogramou tudo? Quem se atreveu a mexer na minha organização virginiana? Não era nada disso. Eu apertei CONFIRMA. Eu sabia o que eu queria e dormi tranqüila, acordei em paz. E agora, o botão que eu não tinha tocado, piscando, rindo da minha cara. Ele ligou sozinho, tão autônomo, tão sarcástico. Tá rindo e me dizendo: "Cai na real! Não se programa um coração".

terça-feira, 23 de outubro de 2007

A nuvem que eu quero

Ainda tô acreditando nessa nuvem. Ela vai e vem. Não encobre o Sol, nem traz a tempestade. Tá brincando de esconde-esconde. Quando ela aparece, eu deslizo no etéreo até agarrá-la. Ela se deixa pegar, fica um tempo nos meus braços, e logo sai correndo de novo, pra viver sua liberdade de quem pode ser leve como algodão. Ela quer rodar, varrer a imensidão. E eu quero que ela fique. Não, não quero que estacione sobre a minha cabeça. Quero apenas que deságüe sobre mim "esse céu sem fim".

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Valei!

Foi bom ouvir isso de novo ...

Se o Senhor me for louvado
Eu vou voltar pro meu serrado
Por ali ficou quem temperou
O meu amor e semeou em mim
Essa incrível saudade
Se é por vontade de Deus
Valei, valei

Se pedir a Deus pelo meu prazer
Não for pecado, vou rezar
Pra quando eu voltar a rever
Todas as brincadeiras do passado
Cortejar meu serrado
Em dia feriado
Viva o cordão azul e encarnado

Eu sei, serei feliz de novo
Meu povo, deixa eu chorar com você
Serei feliz de novo
Meu povo, deixa eu chorar com você
Serei feliz de novo
Meu povo, deixa eu chorar

(Serrado - Djavan)

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Por que eu estudo Letras

Ia começar dizendo que nunca fui boa em Matemática. Mas me lembrei que fui, sim. Era boa aluna, esforçada e não admitia tirar nota baixa. Nem em Física, vejam só! Mas os tempos de esforços escolares eram muito diferentes dos dias de hoje, e não consigo mais resolver uma simples equação de 1º grau, uma regra de três simples. Exemplificando:

Ele não ligou = ele não quer falar comigo/me ver
Eu liguei e ele não retornou = ele não quer falar comigo/me ver

Na lógica matemática, com qualquer uma das duas variantes, o resultado é igual a zero. Na lógica das minhas vontades, ainda estou batalhando uma resposta melhor:

Ele não ligou = x
Eu liguei e ele não retornou = y

Tô tentando achar mil hipóteses diferentes para x e y. Melhor nem citar, pois toda mulher conhece de cor e salteado quais são (nessas horas, a gente pensa até em abdução alienígena). Mas a verdade é que, tirando a prova dos nove, tudo que resta é um conjunto vazio.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Assistências

- Coristina
- Band Aid
- Fisioterapia

Na minha lista de cuidados de hoje, ficou faltando uma (ou mais) coisa essencial, que não tem muito a ver com descongestionante, curativo ou infra-vermelho. Preciso de cheiro, beijo, tato. Será quem tem na Drogasil? Será que o convênio cobre?

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Desse jeito assim

Hoje eu acordei assim, melancólica como um samba-bossa cantado por João ...

Outra vez
Sem você
Outra vez
Sem amor
Outra vez
Vou chorar
Vou sofrer
Até você voltar
Outra vez
Vou vagar
Por aí
Pra esquecer
Outra vez
Vou falar
Mal do mundo
Até você voltar ...

(Tom Jobim)

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Estranho domingo de festa

Quando eu ouvi o teu nome, ao telefone, naquele domingo difícil, sabia que estava sem salvação. O coração desavisado deu um pulo e não se lembrou da febre seca que o teu sumiço previsível deixou no meu corpo, em pleno Carnaval. Naquele domingo em que tudo ia em ritmo marcado, aborrecido, e eu tentava distrair uma ansiedade pulsante, que me saía pela boca. Tua voz, teu nome ... Era isso, então? E a minha meia hesitação foi desarmada pelo som do teu sorriso. Sorriso melodia esse teu! Estava certo: eu iria te ver. Sem nenhuma chance pro meu discursinho-feminista-revanchista-de-quinta. Eu não iria pra ouvir as tuas histórias, aceitar as tuas desculpas, nem pedir qualquer promessa. Eu iria mesmo pra me achar nos teus braços e me impregnar de novo do teu cheiro de homem que sabe o que quer. E assim foi. Sem se importar com a presença do garçom, você arrancou meu vestido com os olhos, enquanto minha boca afagava cada imperfeição desenhada no teu rosto. Sua barba malfeita amaciou minha pele, espantando os meus medos. Então, com destreza de amante, você me levou pra casa e colocou um jazz bem no meio do meu domingo assustado. Já era noite, mas você me deu uma manhã inteira de piano e sax. Sol antecipado às três e vinte da manhã. Ainda não sei bem com que mágica amadora você fez aparecer aquela flor vermelha no fim do meu domingo borrado de cinza. Estranhos esses domingos que começam inapetentes, cheios de nuvens escuras, e acabam com um gol que define o campeonato, marcado aos 45 min do segundo tempo. Estranho acordar sem luz, tateando as paredes vazias e ir dormir embriagada do teu gosto, aconchegada pelo peso da tua mão exata, no meu corpo exausto. Estranho acordar sem sonho e ir dormir em festa. Estranho, tudo muito estranho, nesse começo de segunda-feira sem você.

O que será?

Presságio? Sinal? Sei lá ... hoje vou dar uma folga pro meu ceticismo.

Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina

(Cajuína, Caetano Veloso)

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O menor dos males


Criou estardalhaço esta semana, quase tanto quanto a "demissão" do gerúndio, este documento oficial, com grafia incorreta, distribuído internamente entre órgãos do legislativo. Ainda tô pra dizer que isso nem é tão feio, un error sin valor, una tontería, perto do que se apronta por lá.

Aunque sin precio ...

Mi corazón está en el mostrador.

Lição de casa

Na aula de ontem, falando sobre o vínculo indissociável entre a obra de Machado de Assis e a matéria histórica brasileira, o Pasta resumiu aquilo que eu acho que todo mundo que nasce neste chão deveria ter em mente, desde criancinha; claro, como perspectiva de correção:

"No Brasil se progride repondo atraso, e não construindo cidadania."

Professor, sem fetichismo e/ou idolatria: você é meu herói!

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Ui!

Já que o Renan tá lá, "firme no propósito" (adoro esse jargão evangélico!), só me resta pensar em sacanagem (no bom sentido). Tenho percebido que há em nossa música uma latência sexual, que nada tem de latência. Mais explícito que isso, impossível! Vamos lá: trechos de três clássicos da MPB, Música Pornográfica Brasileira:

1) O meu amor - Chico Buarque

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai ...

2) Tá delícia, tá gostoso - Martinho da Vila

Vem me salvar boca a boca
Tô morrendo de amor
Vem fazer amor bonito
Vem pra se deliciar
Você é fêmea no cio
Deixa seu macho dengoso
Quando diz no meu ouvido
Tá delícia , tá gostoso
Tá, tá, tá ... tá delícia, tá gostoso ...

3) Luxúria - Isabella Taviani

Dobro os joelhos
Quando você me pega, me amassa, me quebra,
Me usa demais
Perco as rédeas
Quando você demora, devora, implora sempre por mais
Eu sou navalha cortando na carne
Eu sou a boca que a língua invade
Sou o desejo maldito e bendito, profano e covarde
Disfaça assim de mim
Que eu gosto e desgosto, me dobro,
Nem lhe cobro rapaz
Ordene e não peça
Muito me interessa a sua potência, seu calibre e seu gás ...

terça-feira, 2 de outubro de 2007

111 sem-família

Chegamos aos 15 anos do massacre no Carandiru. O que mais me espanta é que, diferentemente do que se passa com tragédias de grande porte, ninguém quer saber como estão as famílias das vítimas. Todo mundo se comove com os parentes não indenizados do desastre da Gol. O mesmo vai acontecer daqui a um ano, em relação ao acidente da TAM. As famílias daqueles que morreram no atentado ao World Trade Center, então, viraram quase tão mártires quanto os homens-bombas que toparam fazer o estrago, entre os seus. Óbvio, são mazelas de naturezas muitos distintas, de proporções diversas, mas ainda sim, eu estranho. Ninguém quer saber o que aconteceu com mães, esposas e filhos dos 111 (pra ficar no número oficial) sacrificados no Carandiru? Não interessa? A dor dessa gente toda foi (tem sido) menor? Ou o sofrimento de parente de gente inocente, que utiliza transporte aéreo, tem prevalência ao dos familiares de bandidos encarcerados? Por que ninguém entrevista a noiva do cara que tava terminando o cumprimento da pena, cheia de sonhos e um vestido de noiva emprestado? Por que ninguém tem pena dos filhos que iam todos os domingos dividir macarronada e refrigerante barato com o pai na detenção? Será que compaixão é um troço seletivo? Quem indeniza essa gente toda, que vem sendo privada, desde sempre, de qualquer oportunidade de vida decente? Mas, como disseram Caetano e Gil, presos são quase todos pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres. Simplesmente não interessa. Pouco importa. A título de curiosidade, lêem-se os números da segurança pública na Veja e assiste-se ao filme do Babenco, como entretenimento, num domingo à tarde. Ao menos, uma reflexão belíssima (no limiar da possibilidade) do Fernando Bonassi, hoje, na Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0210200729.htm.