quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Dilemas

A moça que faz minha sobrancelha é daquelas que aproveitam o cliente para um desabafo. Geralmente é o cliente quem aproveita a cadeira para chorar suas lamúrias. Enfim, sou boa ouvinte desde criancinha, quando ficava atrás da porta, escutando as conversas adultas entre minha mãe e minha avó. Já que eu não podia participar, o jeito era ouvir. O fato é que a Jucely, a moça que me salvou de ter a sobrancelha do palhaço, não deve estar num bom momento. Na antepenúltima feitura de sobrancelha, me perguntou se eu acreditava em Deus. Imagine que perguntinha fácil, ainda mais pra quem estava sendo tortutado por vontade própria. Engasguei, hesitei e, no fim, enrolei. Tudo isso porque ela queria me contar a experiência dela, de como Jesus adentrou seu coração. Por fim, fiquei sabendo que é testemunha de Jeová. Inteligente a Ju, boa argumentação, embora tenha dito que precisa estudar muito para poder explicar a forma como ela entende uma série de coisas. Quando eu perguntei sobre a proibição religiosa de doar e receber sangue, foi a vez dela me enrolar. Mas disse que, hoje, a medicina tá muito avançada, e que existem alternativas a transfundir o seu sangue com o de um estranho Ok, ok. É quase como dizer que antes não existia penicilina e todos os outros antibióticos. Na penúltima sessão tortura, a Ju estava impressionada com o que lhe havia dito o cliente matutino. Um tipo misterioso, que se achava o filósofo dos desesperados, uma espécie de Paulo Coelho dos salões de beleza. Instigou a Ju a pensar sobre sua vida, seu presente, passado e futuro. Disse-lhe que era uma pessoa eficiente, mas não eficaz, e perguntou se ela sabia a diferença entre os dois predicados. Fez a Ju pensar e vir ditar sua conclusão para quem mesmo? Não lembro exatamente o que foi, porque a dor me consumia. Hoje, querendo dar um jeito nessa minha aparência de mulher das cavernas, lá fui eu sofrer um pouquinho, expiar alguns pecados. Ju anunciou que, provavelmente, largará o trabalho. Está com muitos problemas pessoais, tem faltado bastante ao trabalho, precisa de colo de mãe, uma choramingueira de fazer dó. Eu disse que se ela estava sentindo essa necessidade deveria sim parar. O que mais eu poderia dizer? Perguntar se ela não tem conta pra pagar, se não precisa do emprego, se a vida não tá dura? Tem mais: a Ju acha que as colegas de trabalho não gostam dela e isso a faz sofrer. Também acha que a gerente é pouco flexível em entender seus problemas pessoais e ausências ao batente. É, moça sensível a Ju ...

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Amor de banheira

Fiquei pensando que o amor sempre chega numa fase em que estaciona. Sim, pode ser a tal fase morna, aquela em que não faísca mais, mas também, ao contrário do desconforto do frio, é aquela mansidão de banheira em que a gente quer se deixar ficar. Aquele amálgama de tanta coisa que já foi vivida, sofrida, desentendida, acordada ou, simplesmente, deixada em algum canto onde não vá atrapalhar a passagem. Porque em se tratando de amor, aparar todas as arestas, por mais artista da convivência que se seja, é simplesmente inviável. No máximo, consegue-se podar umas e outras, às vezes nossas, outras, do outro. E os cantos vão ficando repletos de coisas de que abdicamos, desconsideramos, relevamos, fazemos vistas grossas. Vez ou outra, tropicamos numa delas e acaba machucando, incomodando, mas seguimos. Seguimos pro nosso quentinho, morninho, o amor de banheira, cuja profundidade não oferece mais nenhum perigo.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O frágil milagre da vida

Mais um começo de ano, mais um verão chuvoso, mais desastres, alagamentos, prejuízos quilométricos e, o mais grave de tudo, muito mais vidas perdidas. Prejuízo incalculável. E toda essa tragédia desfilada aos nossos olhos pela TV me faz pensar, mais angustiadamente, na nossa vulnerabilidade. Não se morre só de câncer ou cólera, infarto do miocárdio ou meningite. Cada dia mais vale a máxima que eu sempre ouvi das minha mãe - "pra morrer, basta estar vivo". E você pode estar em casa, sentindo-se abrigado, protegido, a salvo. Nada. Não sei se levo muito a sério a outra máxima da minha mãe, a de que "quando chega a hora, não tem jeito", mas é terrível pensar que somos assim tão perecíveis, tão insignificantes, diante da enormidade e implacabilidade da natureza e dessa suposta "hora que chega". Pensei também no famoso título do Kundera, "A insustentável leveza do ser", já que embora o romance não trate necessariamente dessa fragilidade, os adjetivos "leve" e "insustentável" servem perfeitamente a esse sentimento. E o que eu mais penso agora, que há um serzinho crescendo dentro de mim, é que essa necessidade de proteção instintiva é, ao mesmo tempo, o céu e o inferno da maternidade. Só depois da gravidez confirmada e de uma incipiente barriga é que eu começo a me dar conta da veracidade de uma frase que antes me parecia meio cafona: "a vida é um milagre". Mas por que tem que ser um milagre assim tão efêmero? No fundo, eu sempre soube de uma coisa. Se um dia eu pudesse acabar com uma dor humana, eu cessaria a dor das mães que perdem seus filhos. Não deve haver nenhuma pior, afinal, pra todas as outras tem morfina. Sei que esse texto tá pessimista demais pra um começo de ciclo, mas não é assim tão grave. Por mais inútil que nos pareça, principalmente diante de grandes catástrofes, vamos seguir tentando evitar o cigarro, as gorduras trans e o colesterol, vamos continuar trabalhando por mais conforto, habitações seguras e férias na praia, vamos fazer de tudo para que nossos filhos cresçam saudáveis e inteligentes, vamos nos solidarizar com as dores alheias de perto ou de longe, enfim vamos continuar lutando pela vida, por esse milagre tão fugaz, tão trivial e tão incrível.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Poesia

Sempre que eu ouço essa música, eu penso no nosso começo, no nosso presente, e tenho vontade de postá-la aqui, pra você. É de uma simplicidade tão linda, que não poderia ter outro nome - Poesia. Sei que nem sempre é tudo azul. Às vezes fica meio acinzentado e já chegou a ficar preto mesmo. Mas estamos aprendendo (eu, pelo menos) que o amor não tem apenas uma cor. Nem um único sabor, uma única textura, um único cheiro ...

Sorri
Quando te conheci,
Quis ser de mais ninguém
Existia um porém que eu fiquei sem saber
Se o que tinha de ser me fazia sorrir
Menti, resisti com ardor
Não pensava em querer
Foi olhar pra você e o cenário mudou
E ficou tudo azul como tinha de ser
Deixei a mão da poesia rabiscar um poema
Pra falar de amor
Ter você como tema
E agradecer em verso a prosa que eu ouvi
Em letra e melodia
Agradeço o dia em que te conheci
(Tereza Cristina)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Feliz Aniversário

Vó, esse blog tá virando quase que um cantinho nosso, o meu cantinho de falar com você. E aí, hoje, que seria o seu aniversário, só pensei em um jeito de te mandar o meu abraço. Abraço apertado e rodado, com você rindo da minha força e dizendo pra eu te soltar, porque girar te deixa tonta. Pensei ainda em festa com bolo, brigadeiro e, se bobear, até chapeuzinho, porque você sempre foi a criança mais mais autêntica da casa. Vó, se você puder assoprar suas velinhas hoje, faça um pedido bem bonito ... sei lá, viajar com o vovô, dançar com ele agarradinho, rever a bisa e todas as suas irmãs ... Puxa, vó, se você visse as perninhas do Rafa, tão gordinho, sorridente na sua banguelice, tenho certeza de que você diria, no seu portunhol, algo como "olha que pachorra". Já da Gabi, você diria "essa tiene correa!". Ai, que saudade, minha avozinha tão linda, meu chuchu, meu amor tão querido ... A gente vai se falando, vó ... Ano que vem, nessa data, se tudo der certo, eu vou olhar para o meu neném e dizer: "Hoje é aniversário da vovó que tá lá no céu".
Parabéns, vó! Tomara que tenha bolo de laranja e café com leite por aí.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Indignação

Essas eleições estão me deixando tão de bode, que já tô contando os minutos pra chegar o dia três de outubro. E nem tem nada a ver com os Tiriricas da vida, não. Quer dizer, tem também, mas este nem é o motivo principal. O fato é que nesses tempos de redes sociais, mesmo que você não queira, não há como fugir: as opiniões se escancaram e, com elas, julgamentos de valor, ranços, pedantismo, arrogância e, principalmente, preconceitos. Contatos afirmando não conhecer ninguém com nível superior que seja eleitor de Dilma Rousseff e, ao mesmo tempo, que o Nordeste em peso, devido à sua falta de cultura e educação, irá votar nesta candidata. Há até aqueles que extrapolam todos os limites e fazem "piadas", dizendo que nordestino não vota no Serra porque este prometeu dar emprego para todo mundo. Alguém riu, aí? Que pena! Muito triste fazer anedota com um dos mais graves problemas sociais do nosso País; problema, aliás, que graças a um nordestino que enfrentou a falta de oportunidades e migrou quilômetros em um pau-de-arara, começou a ser tratado com respeito, recursos e, mais do que isso, com carinho. Este post não é pra ser, de forma alguma, apartidário. Afinal, não tenho por que esconder minha preferência política, sendo que a defendo sem ofender ninguém, ao contrário do que tenho visto por aí. Agora, o que mais me espanta é que estas pérolas apodrecidas saiam de bocas inesperadas, antes insuspeitas para mim. Gente bem nutrida e com diploma, que desconhece os eleitores de Dilma porque só os procura entre os seus pares. Aviso a esses incautos: vocês não terão de esperar mais muito tempo para encontrar universitários entre os eleitores dela (ou de seus sucessores). Graças ao governo de um presidente não diplomado, milhares de brasileiros pobres já estão tendo a oportunidade de chegar ao terceiro grau. Por enquanto, se quiserem saber onde mais facilmente estão os eleitores de Dilma, basta olhar para os lados: são os porteiros, zeladores, diaristas, frentistas, ... Vale até bater um papo com o moço simpático do bar; sabe aquele que sempre serve o seu cafezinho com a maior alegria?! Sei que o dia três vai chegar, mas com ele, infelizmente, não irá o preconceito vergonhoso de eleitores (não consegui usar a palavra "cidadãos") que se baseiam menos em propostas e mais em status. Ah, sim, se for por falta de diploma universitário, eu tenho três. Pena que os piadistas de plantão não tenham nível superior em respeito ao próximo.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Do tempo da minha avó

Tenho pensado muito na minha avó e acho que o nome disso é mesmo saudade. E daí que hoje cedo vi uma reportagem na TV, com uma senhorinha linda, que vive numa vila isolada, no sertão de Pernambuco, de onde não sai e de onde conserva as melhores recordações da sua vida. Aí, de repente, ouço aquela canção que a Maria Gadú fez para a avó dela, que diz mais ou menos assim: "de todo o amor que tenho, metade foi tu quem me deu, salvando minh'alma da vida, sorrindo e fazendo o meu eu ...". Fiquei matutando que as avós são esses seres cheios de histórias pra contar, de um mundo que já não existe mais, de uma ternura quase inconcebível nas nossas vidas metropolitanas. A minha avó, essa de quem eu tenho tanta saudade, me contava dos bailes de carnaval do interior, das farras no caminho do sítio para a escola primária, dos namoros que demoravam dez anos pra acontecer, das bonecas feitas de sabugo de milho, do arroz com galinha fumegando no fogão à lenha ... E a grande maravilha disso é que, enquanto ela rememorava, ela me dava um pouco disso, me permitia viver esses cheiros e cores que ela tinha tão vivos na memória. E então, me peguei pensando quais histórias eu e as mulheres da minha geração teremos para contar para os nossos netos. Vamos falar das festas meio bacanais da faculdade, do quanto foi difícil afirmarmo-nos no mercado de trabalho, dos namoros que aconteceram e duraram apenas um dia, das nossas bebedeiras infindáveis pelas baladas da vida, do quanto fizemos para sermos as fodonas e não mulheres submissas como as nossas avós? Ok, são histórias. Mas cadê a poesia disso? Onde estão os gostos, os cheiros, os passarinhos? Que tipo de avós seremos? Eu, que ainda nem mãe sou, tô aqui toda saudosista ... Será que estamos caminhando pra um tempo em que a ternura das avós só será encontrável num sorriso desbotado, estampado num retrato amarelado, tirado lá em vila Longe?

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Lembrança

Eu queria fazer um poema bonito pra dizer uma coisa tão grande. Mas acho que essa coisa grande só cabe numa coisa simples. Porque hoje eu me lembrei das suas mãos e, num instante, fui tomada pelo seu cheiro. Então, essa coisa simples e grande, que tá aqui no meu peito, vai sair assim, sem nenhum rebuscamento: Vó, que saudade de você. Eu te amo tanto.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

XIV

Dandara

Eu só acreditava em Drummond:
o amor chega tarde
Não conhecia o amor que fulgura sem aviso
esse que se sabe proibido
o amor que já se sabe perdido desde o início
Eu não acreditava no impossível
vinha tão sóbria, tão cheia de medidas
não conhecia o esplendor da queda
nem a violência dos abismos

Iracema Macedo

XIII

6 de Maio

estávamos felizes em pleno domingo
a certeza próxima do outro
comida no fogo roupa
já passada
casa nem tão limpa
sapatos num canto
projetos alinhavados

a notícia chegou pelo telefone
apagou o fogo
separou nossos sapatos

notícia maior que a vida

Helena Ortiz

XII

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.

Ferreira Gullar

XI

Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
e limpa à minha espera:


Ana Cristina Cesar

X

Pacto

Daquele que amo
quero o nome, a fome
e a memória. Quero
o agora. O dentro e o fora,
o passado e o futuro.
Quero tudo: o que falta
e o que sobra
o óbvio e o absurdo.

Maria Esther Maciel

IX

Da dor

A dor é algo como se não fosse.
Derrapagem à beira do abismo
(aquele como se não estivesse).
Holofote sobre escura porção de sombras.
Eco à revelia do próprio eu
re-ver-be-ra-ção
por sobre o dia.
Fissura aberta minando,
ora esquecida ora sempre,
em alguma parte do corpo
como se fosse o todo.

Dasdô?
Na infância era uma prima
e seus olhos encovados.

Ana Cecília de Sousa Bastos

VIII

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

Hoje, dos meus cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela amarelada...
Como único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca,
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

Mario Quintana

VII

À Flor da Pele

Acende o cigarro, rapariga. E olha para a
rua onde passam transeuntes desconhecidos.
A tarde vai avançando e nós morrendo nela
ou morrendo nela as nossas esperanças,
a ilusão de eternidade. A beleza o que é?
Braços nus, o ventre liso nu, os cabelos caídos
nos ombros. A desconhecida concentra em si
a atenção do homem desocupado. Para
distrair-se, ele olha para ela e recorda-se
da história antiga do amor, reconstrói
ficções que sabe serem apenas ficções. Assim
passa o tempo, depois irá para casa. Quem
sabe o segredo mais secreto da existência
de cada um? Todos nós temos uma
história. Uns calam-na, outros murmuram
entre dentes os episódios essenciais, outros
encontram palavras com que construir o
poema hermético. Que diferença é que faz?
De tudo se constrói a existência, se alimenta
o sentido. Camisa branca à flor da pele, a
rapariga levantou-se e foi lá dentro do café
comprar qualquer coisa. Palavras, deixai-me
celebrar o vão movimento dos ponteiros do
relógio, os episódios vãos, a nossa morte.

João Camilo

VI

Terceira Elegia (trecho)

Estive sempre de pé no ônibus, espremido entre o ferro
da cadeira e o rumor dos passageiros.
Educado a ser o último, cedi o lugar a gestantes e idosos.
Estive sempre de pé no ônibus, me defendendo
ao largo do corrimão de tantos rumos,
alianças e ponteiros com paradas diferentes.
E o brado irritante do cobrador ainda a exigir
um passo à frente.

O fato de não ter sido é mais trabalhoso
do que a fama. Prossegui a me imaginar,
sondando o que poderia ter vivido.
Disperso, anônimo, no comício do mar
e nas trevas.

Diminuindo o risco, reduzimos a possibilidade
de nos libertar. O medo, o medo, o medo
é o que nos faz escolher.

Descobre-se um amor
na iminência de perdê-lo.

Fabrício Carpinejar

V

Déjeuner du Matin

Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mis le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec le petit cuiller
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a resposé la tasse
Sans me parler
Il a alumé
Une cigarrette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis des cendres
Dans le cendrier
Sans me parler
Sans me regarder
Il s'est levé
Il a mis
Son chapeau sur la tête
Il a mis
Son manteau de pluie
Parce qu'il pleuvait
Il est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder
E moi j'ai pris
Ma tête dans ma main
E j'ai pleuré.

Jacques Prévert

IV

Chanson D'automne

Les sanglots longs
Des violons
De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l'heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure.

Et je m'en vais
Au vent mauvais
Qui m'emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.

Paul Verlaine

III

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst

II

O Poeta

Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?
Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.

Rilke

I

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá Carneiro

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Tinoca


Tinoca é uma cachorra preta
vira e lambe a pata, lambe e lambe o dono
O dono a aperta e leva a passear
patas ladeira acima, patas ladeira abaixo
Tinoca é uma cachorra feliz
encontrou casa, comida e chamego
balança o rabo, sorri contente
patas que deixaram o mundo e ganharam apartamento
Tinoca gosta da rua
e do sofá marrom do dono
refestela-se quando ninguém a expulsa, reivindicando o espaço tomado
pela sua negritude brilhosa de orelhas caídas
Tinoca gosta de ser cachorra
lamber, cheirar, balançar o rabo, não ser dona de si
Tinoca é dona de um imenso amor
desses de que só os cachorros são hospedeiros.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O que está no fundo?

Mas será que eu tenho um fundo? Hoje, especialmente, me sinto tão vazia. Pouca carne, muitos ossos, sinto-me feita de arame farpado. Ou cerca elétrica. Dessas que dão choque a menor triscada. O que está no fundo, quando está, não tem descrição, não é palpável, desentranhável. É um amontoado das coisas mais miseráveis, extraordinárias e bizarras, como as que a gente encontra em um circo: acrobacia, tristeza de palhaço, bicho maltratado, mágica pra sobreviver, fantasia pra existir, um caos de máscaras e riscos, esperando um único aplauso. Se eu cair do trapézio, alguém vai dizer que eu preciso de cuidados. Mas se eu ficar lá, balangando de um lado pro outro, ninguém vai saber da minha tortura, dos meus medos, da minha eterna roleta-russa, nada. Eu vou estar de maiô com lantejoulas e rouge na face. Perfeito. Nem remédio, nem cuidados, só aplausos. Eu tenho medo de trapézio, por mais que me alimente do frio na espinha, quando passo de uma barra pra outra. É isso então? No fundo, no fundo, eu sempre soube que a vida é essa coisa meio mambembe, meio capenga, mas serei condenada ao paredão dos infelizes, se não disser que é um grande espetáculo. Não importa se o leão está velho e nem ruge mais. Se as piadas do palhaço soam mais tristes que seu sorriso desenhado. Se a pipoca está murcha e fria. Sob a grande lona só vale a alegria. Alegria, alegria, vamos comprar nossos ingressos e dar uma bela gargalhada. Dentro do meu picadeiro tem um canto escuro, onde eu posso me vestir de Luciana e não me regozijar com o erro do atirador de facas. No fundo, no fundo, só tem uma coisa: um grande susto de viver.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Imobilizamor

"Se amar, não se mova", eu acabo de ler no blog da Andrea del Fuego. E como essa ideia tem me perseguido! A ideia de que o amor imobiliza. Sei que isso é muitíssimo contestável e vai sempre haver uma legião de amantes dizendo o oposto, assegurando que o amor é mesmo a mola propoulsora da vida. Não sei, mas vejo que pessoas apaixonadas são meio improdutivas, enquanto que o não-amor impulsiona os não amados a correrem atrás do "prejuízo". O desamor, então, já produziu lindos sambas, incontáveis romances, as mais tocantes poesias, filmes, telas, e por aí vai. O desamor é uma inspiração e tanto, principalmente para a indústria farmacêutica. Não estou amargurada, não. Mas já entendi que amor correspondido é inebriante, até esbarrar na incorrespondência entre dois sujeitos tão diferentes. E fico me perguntando por que essa incompatibilidade não produz menos processos de divórcio e mais poesias. Acho que o tema é árido demais pra se encaixar em métrica e rima, enquanto que a desilusão e a solidão já nasceram em versos, embaladas pela nostalgia. O desamor vira música porque não esbarra em roupa suja e toalha molhada. E vira livro porque não precisa pagar contas e mergulhar nas inconveniências da intimidade mais deslavada. Vejo blogs tão abandonados quanto este e corro pra ler a última postagem, invariavelmente falando de um amor consumado. Ligo para amigas que quase não vejo mais e umas me falam de seus maridos, algumas dos filhos e todas de uma apatia que lhes corrói o estômago. Não, não acho que seja sempre assim: apático e ruim. Mas acho que o amor acomoda, sim. Aliás, acomoda e dá muito trabalho, para que o possamos acomodar na rotina, essa senhora pesada, que não tem nada a ver com a mulher sorridente, bem disposta e apta à realização de uma fantasia sexual por dia, da Marie Claire. Não pretendo esticar o assunto, pra não ter que esmiuçar as razões pelas quais todos (ou quase todos) procuramos estar em pares. Só queria entender MESMO por que as angústias solitárias e desamores rendem tanta prosa e poesia, e o conforto modorrento de um bem-sucedido encontro amoroso seca nossas penas. Alguém se arrisca?

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ela

Muita, muita, muita, muita saudade dela ...


De manhã cedo essa senhora se conforma
Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos
Ah, como essa santa não se esquece
De pedir pelas mulheres, pelos filhos, pelo pão
Depois sorri meio sem graça
E abraça aquele homem, aquele mundo que a faz assim feliz

Essa mulher - Joyce

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Espelho, espelho meu

Acho melhor quebrar esse espelho, antes que ele me arrebente. Espelho idiota. Vou fazer pedacinhos de você. Caquinhos e mais caquinhos, que vão se espalhar por aí, até sumir, evaporar e, assim, vou ficar livre de mim mesmo. Quem você pensa que é pra me expor desse jeito? Sem dó, sem retoques, sem minha melhor roupa, ou meu melhor sorriso? Você acha que pode mostrar que sou imperfeito, gordo, magro, alto, baixo, insuficiente? Não pode, eu não deixo. Verdade, você me deixa vaidoso, às vezes. Mas é melhor não. Você acaba com a minha vaidade em segundos. Eu vou arrebentar você. Assim, nunca mais vou ter que olhar pra mim. E, ainda melhor, não vou ter que mexer nisso tudo que você me mostra: imperfeições, inadequações, insuficiências. Vou te destruir e tudo vai ficar bem. Mas ... pera lá ... será? Não sei. Agora fiquei inseguro. Você também me mostra tanta beleza! Já sei. Vou virar você pra parede. Até tudo isso passar, até chegar a hora. Será que um dia eu vou me enxergar?

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Nostalgia

O vô cuidando das gaiolas dos passarinhos
A vó fazendo bife acebolado
Eu, na cozinha, saboreando o cheiro, espiando o vô piar,
sonhando em voar.

Descompasso

eu que procuro poesia
só encontro arritmia
não será isso a poesia?
um coração sem ritmo
um pensamento sem métrica
o pulso correndo sem veia?

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Pausa

Reparei agora que houve um mês de intervalo entre a postagem abaixo e a anterior. Esclarecendo: blogar requer ar.