O crachá dizia: PROVISÓRIO. Riu sozinho da coincidência. Há muito tempo se sentia assim. Como a psicóloga do RH conseguiu captar naquela curta entrevista aquilo que nem ele sabia explicar? Coincidência, claro. O emprego recém-adquirido ainda lhe causava estranhamento, quase aversão. Era, na verdade, uma tentativa de frear a sua itinerância pelo mundo: barman em Chicago, estivador em Padang, cozinheiro em Hanover, motorista em Adana, quase toureiro em Madrid. E agora, estava de volta à cidade onde nasceu, cresceu até ser menino e de onde, depois, fugiu. De terno e gravata, atrás de uma mesa fria, no metro quadrado que lhe cabia, apartado dos demais por um negócio chamado drywall. Tinha visto tanta encrenca pelo mundo, disputa por espaços, necessidade de legitimação ... E sentia uma ponta de orgulho, que nunca ostentava, por ter nascido em um país em que as pessoas só brigavam por ser Vasco ou Flamengo, Portela ou Mangueira, petista ou tucano. Mas ali, no mundo corporativo, tudo era ordenadamente dividido. Sua peregrinação começou aos 16 anos, quando saiu com uma mochila e alguns trocados economizados do primeiro emprego, disposto a encontrar o pai. A mãe, que não se conformava com o abandono, buscava nas garrafas de uísque barato um consolo não menos vulgar. A única forma de trazer a mãe de volta seria ir atrás do pai. Tinha poucas pistas. De carona em carona, chegou ao interior do país, seguindo, instintivamente, um trajeto que ninguém tinha traçado. Chegou à casa de uma tia da tia, que há muitos anos não tinha notícias do Paulo. O primeiro fracasso arruinou seu projeto. Sua disposição ao sair de casa, não tinha a menor convicção. Apenas precisava fazer alguma coisa; salvar a sua mãe. Nunca sentiu falta do pai. Na rodoviária, entrou em um ônibus para o Sul. Resolveu salvar a si mesmo. Desobrigando-se de encontrar o pai, deixou-se perder. Não sabia para onde queria ir, apenas que não ficaria, nem poderia voltar. Conheceu os quatro cantos do mundo, aprendeu doze idiomas, comeu de tudo e, muitas vezes, ficou sem comer. Nunca guardava dinheiro. Em cada um dos continentes, encontrou os irmãos que não teve. Gostou de algumas mulheres e se apaixonou por uma ruiva metida a zen, que conheceu num pub sujo em Durham. Por causa dela, até quis estancar seus passos, mas não tinha paciência para sexo tântrico. Seguiu. Pensava nela, às vezes. Muitos anos depois do ônibus sacolejante, um telefonema o trouxe de volta. O último postal remetido à mãe informava sua localização. Ela estava mais doente. Não tinha ninguém. Ele, que tinha o mundo, resignou-se. Mas não chegou a tempo. Nem pra chorar, nem pra se culpar. Repondo a vida na mochila, teve uma crise de destino e quis ficar. E descobriu rápido que, para ficar, precisaria de mais dinheiro do que para ir. O aluguel, os impostos e o contato distante com o mundo que ficava longe exigiam dele uma renda fixa. Não tinha formação escolar superior, mas era o único dos 130 candidatos que falava mandarim. Ganhou o emprego. Mas as perdas lhe custavam. No refeitório reservado aos funcionários administrativos - mais uma extravagância do apartheid empresarial - outros colegas tinham no crachá a mesma inscrição: PROVISÓRIO. Mas, diferentes dele, tinham os pés bem fincados naquele paviflex esverdeado. E dariam o melhor de si, exatamente como prometeram no dia da entrevista, para ali continuar. Com o fim do almoço, a conversa girava em torno das dificuldades do mercado de trabalho e da vida familiar. Pela primeira vez, desde que deixou a mãe, se sentiu sozinho. No final da tarde, foi chamado ao RH. A moça loira simpática lhe pediu para assinar um monte de papéis, que formalizavam sua admissão. Com duas toneladas nas costas, rabiscava o nome sem ler. Ao término de algumas explicações sobre datas de pagamento e previdência social, a nova colega sentenciou, tranqüilamente: “Aqui está o seu crachá definitivo. Por favor, devolva-me o provisório”. Definitivo? Sem saber direito o que aquilo significava, mas angustiadamente desconfiado, obedeceu. Saiu da sala, olhando para a foto expressa. O fundo branco, sem nenhuma das muitas paisagens que conhecia. Abaixo da foto, em letras garrafais, o seu nome. Tremendo de aflição, lavou o rosto no sanitário funcional masculino. Acabava de entender. Não era mais provisório. Era apenas o Eduardo.
sábado, 22 de setembro de 2007
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