Para V.C.
Raquel estava ansiosa. Acordou cedo e ligou para Cristina. Confirmaram e combinaram horário e local. Unhas pintadas, cabelo hidratado, tudo estava de acordo com as exigências de sua vaidade. Chamava a mãe para lhe dar certeza de que o vestido azul não marcava o culote. "Você está linda, minha filha. Use-o com as sandálias brancas". Não, as sandálias brancas a deixariam muito alta. Iria de rasteirinha. Há muito tempo Raquel só se deslocava de casa para o trabalho e vice-versa. As amigas reclamavam sua presença nas festas, happy hours e viagens. Diante das recusas sem explicação, diziam, entre cochichos, que a amiga curtia uma dor-de-cotovelo. Algumas arriscavam o nome do gajo que deixara Raquel de coração partido. O Paulo, da seção de compras, ou aquele alto e magro, que agora andava aos beijos com a Cláudia. A verdade era que Raquel não passava por uma boa fase. Deixou até de freqüentar as aulas de alongamento, de que parecia gostar tanto. Sua casa era o seu refúgio contra os males do mundo. A voz doce da mãe, o sorriso grande do pai e os pêlos macios de Cecília, sua gatinha, lhe davam todo o alento de que precisava. E então, para que parassem as tagarelices e especulações, aos convites dos amigos passou a responder com a saúde fraca de seus parentes. Faria qualquer coisa para não sair de sua fortaleza. A avó tivera uma crise de rins, a prima recém-operada da vesícula esperava os seus chamegos, ou a irmã, muito gripada, talvez, precisasse de um chazinho. A mãe e o pai eram sagrados. Com eles não mexia. E também tinha o cuidado de nunca matar ninguém. Tinha medo de ser castigada. Eram tantos parentes vitimados por golpes de ar e infecções de intestino que, junto com as tagarelices e especulações, cessaram também os convites. Por um tempo Raquel sentiu-se aliviada. Poderia ficar com Ceci no colo, até que uma das duas adormecesse, ou comer caixas de chocolate, sem se preocupar com a última dieta de Saturno. Mais que isso: não precisaria conversar sobre os livros e filmes que não tinha ânimo de ler e assistir. O pai, por mais que lhe agradasse a companhia da filhota, enrugava a testa ao vê-la transitar de pijama, do quarto à sala de jantar, em domingos ensolarados. A mãe comprava o jornal e comentava, com disfarce, sobre shows e espetáculos na cidade. Raquel não se animava. Já lhe bastava toda aquela convivência na repartição, o telefone de campainha estridente e as vantagens contadas pelas colegas, entre risadas forçadas e garfadas no bandejão. Tudo seguia até que, naquela sexta-feira, ao bater o ponto e virar para pegar o copo descartável para um gole de café, viu, de relance, um arranjo vistoso sobre a sua mesa. Eram grandes girassóis enlaçados por uma fita vermelha. Sem entender, Raquel pegou o arranjo e procurou pelo cartão. Do lado de fora do envelope, o seu nome, com R bem caprichado. Do lado de dentro, apenas uma palavra, em tom de pedido, mas sem exclamação, nem assinatura: “desabroche”. Raquel perguntou pelo entregador, mas ninguém tinha visto nada. Quando Sandra chegou, às sete e quinze da manhã, as flores já estavam lá. Ela abrira o escritório. Pensou em guardá-las num vaso com água, mas receou que a vizinha de mesa se zangasse. Raquel trabalhou aquela manhã, suspirando para o arranjo que colocara no canto direito. Mais do que a necessidade de descobrir o autor daquele mimo, um possível admirador, tinha ânsia de cumprir a recomendação do cartão. Voltando do almoço, viu que o escritório estava em festa. Finalmente saíra a promoção do Júlio. Pediram bolo e salgados e garantiram que continuariam a comemoração com muito chopp gelado, na tarde seguinte. Raquel, arfante, perguntou com um fio de voz se seria bem vinda. Surpresos, acolheram-na com sincera satisfação. E assim, chegou ao vestido azul. A mãe lhe pedia a roupa para passar, as sandálias para limpar e lhe aconselhava não andar com muito dinheiro. Era melhor o cartão de débito. O pai, vendo a agitação que tomara conta da casa, desenrugou a testa. Vestida e perfumada, Raquel despediu-se com beijos. Ao fechar a porta, ouviu um barulho. Era Ceci, miando um miado fino e repetido, como se tivesse algo a dizer. Angustiada, Raquel pôs a gata no colo e acariciou seu pêlo branquinho. Examinou-a com cuidado, procurando algum machucado, alguma razão para aquela reclamação fora de hora. Tudo parecia bem, mas a gatinha continuava sua fala agitada. Raquel não acreditava. Justo naquele dia em que nenhum parente padecia, Ceci lhe implorava atenção?! Como deixar a sua fiel companheira desses meses de reclusão? Seria um mau presságio? Desnorteada, descalçou os pés e sentou na soleira. Já pensando na desculpa que daria na segunda-feira, vencida, espantou-se com o pulo de Ceci. Seus olhos mal alcançavam por cima do telhado, mas conseguiram se surpreender com o que viram. A gata não estava sozinha. Colocando de volta a sandália rasteira, sorria sozinha e dizia baixinho: “Desabroche, Ceci!”
Um comentário:
Não pára não tá? Tá Lindo!
M.
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