quarta-feira, 8 de julho de 2009

Um estranho comum

Ele apanhou na infância. Abuso moral. O pai dizia que ele era feio, que seu nariz era medonho. Ele não tinha coragem de se olhar no espelho. Pra não ver as espinhas, não acendia as luzes, enquanto lavava o rosto. O nariz grosseiro, a pele negra, o cabelo ruim. Todo ele um transtorno absoluto. E ainda criança, quando devia estar nos parques ou ruas, brincando de esconde-esconde, pega-pega ou barra-manteiga, precisou trabalhar em regime rigoroso. Mais uma imposição do pai carrasco. Tudo isso fez dele um complexo de inferioridade ambulante. Tímido, ensimesmado, autoestima rebaixada, sabe-se lá quantas outras neuras e traumas, dos quais ele não conseguiu se ver livre, mesmo sendo uma das pessoas mais populares do mundo. Uma das pessoas mais sozinhas do planeta. Será? Será mesmo? O que sabemos sobre ele, além da pele que embranqueceu de repente, do corpo que sumiu, do nariz que afinou, dos meninos com ele brincou já adulto? O que a mídia nos contou sobre ele? Para além do demerol, do rancho da fantasia, das dívidas, dos casamentos arranjados, de uma vendagem recorde de discos? Ninguém sabe nada sobre esse moço que morreu. Porque essa pessoa que definhou publicamente, sem alternativa, era um moço qualquer. Um desconhecido. Alguém que sofreu por se olhar no espelho e não gostar do que viu. Alguém que se sentiu rejeitado tantas vezes, que desconfiou de quem se aproximou verdadeiramente. Alguém que podendo (e pôde), negou a realidade e criou um mundo cor-de-rosa, pra tentar (desafortunadamente) se trancar nele. Alguém que não conseguia dormir, com o peito abafado pela angústia. Esse moço que morreu era indefinível, múltiplo, incompleto. Tão humano, tão ordinariamente comum, que o mundo não o aceitou. O mundo não tolera que as pessoas sejam comuns. Ainda mais se elas tiverem um talento notável. Excêntrico? O que há de excêntrico na dor, no sofrimento, na inadequação, na autorejeição? O que há de excêntrico, se é dessa massa atormentada que somos feitos? Excêntrica era a máscara (a de pano, não a do sorriso forçado, tão exibido aos paparazzi de plantão do mundão), a luva, a dança, a vida? A vida desse moço parecia estar mesmo fora do centro, excedendo para os lados, como excede, muitas vezes, em todos nós. Seguramos ou não. Conformamos e impedimos ou não que esse excesso transborde. Num precipício, num ataque cardíaco, num recomeço. Na morte. Morte, muitas vezes, que é só excesso de vida.

Um comentário:

Juliana disse...

Que lindo, Lu. Andava com saudade dos seus escritos. Ultimamente, ando com saudade de tanta coisa... rs. Essa frase final resumiu tudo.
Beijos!
Ju