Uma manhã de verão outonal, sem o sol forte e com as folhagens das árvores dançando embaladas pelo vento. Eles estavam parados quase na esquina, ainda sobre a calçada. Ele, bem mais alto, vestia uma malha dessas que parecem ter sido recém tiradas da gaveta, ainda com o cheiro bom da última lavada. Ela, miudinha, preparada para mais um dia de trabalho: bota, casaco, guarda-chuva ... Ele segurava o rosto dela entre as mãos e a retinha, sorrindo, sussurando, ajeitando-lhe o cabelo. Ela sorria de volta e ouvia paralisada. Ele não queria que ela fosse. E tudo que ela queria era ficar. Talvez ele estivesse desejando-lhe um bom dia, ou recomendando-lhe cuidado no trajeto. Talvez estivesse agradecendo a noite que tiveram, o jantar improvisado, o vinho derramado, o amor demorado. Talvez estivesse apenas sorvendo mais um pouco do seu cheiro matinal: shampoo e sabonete. Maravilhava-se por ela ser incrivelmente cheirosa sem uma gota de Chanel. Um beijo e ele a envolveu nos braços de novo. Apertava-a contra si, de olhos fechados. Afastou-a e fixou-se novamente nos seus olhos. A expressão do seu rosto agigantava e tomava conta de tudo. Sempre sorrindo, ele repetia alguma coisa. Ela tentava, sem convicção, se esquivar dos seus carinhos. Olhava o relógio e tentava partir. Ele lhe deu mais uma abraço aconchegante, beijou-lhe os lábios e, finalmente, a soltou. Ela saiu a passos curtos. Olhava pra trás e ele acenava, ainda parado, ainda sorrindo, ainda encantado. Depois de cruzar a esquina, de onde já não o avistava mais, ela acelerou os passos, como era seu jeito de sempre fazer. E mesmo apressada, atrasada, olhava para tudo e para todos. Queria compartilhar, repartir aquele breve instante de plenitude. O vento gelado batia no seu rosto e ela se abandonava nessa sensação. Mastigava as últimas palavras que tinha ouvido e tentava espantar aquele seu medo tão íntimo. Ainda sentindo-se abraçada por ele, lembrou das manhãs em que, após uma noite perfeita, tudo o que restava era um "bom dia" sonolento e sem entusiasmo, às vezes seguido de um "depois a gente se fala". Ou das madrugadas em que dirigia sozinha pela cidade, fugindo dessa chateação. Mas não queria sentir medo; ao contrário, precisava desvanecê-lo. Precisava acreditar no quanto era interessante e merecedora de manhãs de verão outonal. Distraiu-se com o toque do celular. Era uma mensagem dele: "Sonhei que você esteve aqui. O seu cheiro está em toda parte. Hoje eu faço o jantar".
*
Um homem pode ir ao fundo do fundo do fundo se for por você
Um homem pode tapar os buracos do mundo se for por você
Pode inventar qualquer mundo, como um vagabundo se for por você
Basta sonhar com você
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(Moto Contínuo - Edu e Chico)