quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Basta sonhar com você

Uma manhã de verão outonal, sem o sol forte e com as folhagens das árvores dançando embaladas pelo vento. Eles estavam parados quase na esquina, ainda sobre a calçada. Ele, bem mais alto, vestia uma malha dessas que parecem ter sido recém tiradas da gaveta, ainda com o cheiro bom da última lavada. Ela, miudinha, preparada para mais um dia de trabalho: bota, casaco, guarda-chuva ... Ele segurava o rosto dela entre as mãos e a retinha, sorrindo, sussurando, ajeitando-lhe o cabelo. Ela sorria de volta e ouvia paralisada. Ele não queria que ela fosse. E tudo que ela queria era ficar. Talvez ele estivesse desejando-lhe um bom dia, ou recomendando-lhe cuidado no trajeto. Talvez estivesse agradecendo a noite que tiveram, o jantar improvisado, o vinho derramado, o amor demorado. Talvez estivesse apenas sorvendo mais um pouco do seu cheiro matinal: shampoo e sabonete. Maravilhava-se por ela ser incrivelmente cheirosa sem uma gota de Chanel. Um beijo e ele a envolveu nos braços de novo. Apertava-a contra si, de olhos fechados. Afastou-a e fixou-se novamente nos seus olhos. A expressão do seu rosto agigantava e tomava conta de tudo. Sempre sorrindo, ele repetia alguma coisa. Ela tentava, sem convicção, se esquivar dos seus carinhos. Olhava o relógio e tentava partir. Ele lhe deu mais uma abraço aconchegante, beijou-lhe os lábios e, finalmente, a soltou. Ela saiu a passos curtos. Olhava pra trás e ele acenava, ainda parado, ainda sorrindo, ainda encantado. Depois de cruzar a esquina, de onde já não o avistava mais, ela acelerou os passos, como era seu jeito de sempre fazer. E mesmo apressada, atrasada, olhava para tudo e para todos. Queria compartilhar, repartir aquele breve instante de plenitude. O vento gelado batia no seu rosto e ela se abandonava nessa sensação. Mastigava as últimas palavras que tinha ouvido e tentava espantar aquele seu medo tão íntimo. Ainda sentindo-se abraçada por ele, lembrou das manhãs em que, após uma noite perfeita, tudo o que restava era um "bom dia" sonolento e sem entusiasmo, às vezes seguido de um "depois a gente se fala". Ou das madrugadas em que dirigia sozinha pela cidade, fugindo dessa chateação. Mas não queria sentir medo; ao contrário, precisava desvanecê-lo. Precisava acreditar no quanto era interessante e merecedora de manhãs de verão outonal. Distraiu-se com o toque do celular. Era uma mensagem dele: "Sonhei que você esteve aqui. O seu cheiro está em toda parte. Hoje eu faço o jantar".

*

Um homem pode ir ao fundo do fundo do fundo se for por você

Um homem pode tapar os buracos do mundo se for por você

Pode inventar qualquer mundo, como um vagabundo se for por você

Basta sonhar com você


*

(Moto Contínuo - Edu e Chico)



terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Modinha para Gabriela

Quando eu vim para esse mundo
Eu não atinava em nada
Hoje eu sou Gabriela
Gabriela, ê, meus camaradas
Eu nasci assim, eu cresci assim e sou mesmo assim
Vou ser sempre assim
Gabriela ... sempre Gabriela
Quem me batizou, quem me nomeou
Pouco me importou, é assim que eu sou
Gabriela ... sempre Gabriela
Eu sou sempre igual, não desejo o mal
Amo o natural, etc e tal
Gabriela ... sempre Gabriela

(Dorival Caymmi)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Amor perfeito

Talvez porque minha ânsia de amar seja tão grande, eu esteja com todos esses freios puxados.
Sim, movimento contrário. Parece maluco, mas é o meu jeito de ser tão fiel a mim mesma. Não, eu não quero alguém perfeito. Eu quero um amor perfeito. Um amor perfeito, sob medida pra mim. Com toda a insipidez e toda a explosão contida dentro de alguém. Qual é o amor pefeito? Aquele que eu consiga sentir com todos os meus sentidos, com o corpo e a alma.
Talvez eu precise, sim, dar mais chance prum amor acontecer. Talvez eu confuda mesmo amor com atração. Talvez, talvez ... Eu não preciso mesmo de certezas. Eu só preciso viver.
*
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã
*
(Estrela da Manhã - Manuel Bandeira)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Vida, Chico, Vida

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Deixei a fatia
Mais doce da vida
Na mesa dos homens
De vida vazia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Verti minha vida
Nos cantos, na pia
Na casa dos homens
De vida vadia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz

Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás
Arranca, vida
Estufa, veia
E pulsa, pulsa, pulsa,
Pulsa, pulsa mais
Mais, quero mais
Nem que todos os barcos
Recolham ao cais
Que os faróis da costeira
Me lancem sinais
Arranca, vida
Estufa, vela
Me leva, leva longe
Longe, leva mais

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Toquei na ferida
Nos nervos, nos fios
Nos olhos dos homens
De olhos sombrios
Mas, vida, ali
Eu sei que fui feliz

Vida - Chico Buarque

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Creer

Românticos são poucos
Românticos são loucos desvairados
Que querem ser o outro
Que pensam que o outro é o paraíso
Românticos são lindos
Românticos são limpos e pirados
Que choram com baladas
Que amam sem vergonha e sem juízo
São tipos populares que vivem pelos bares
E mesmo certos vão pedir perdão
E passam a noite em claro
Conhecem o gosto raro
De amar sem medo de outra desilusão
Romântico é uma espécie em extinção

(Românticos - Vander Lee)

Essa música me lembra uma outra espécie em extinção - o lobo guará.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Bonne anne

Ano que começa estranho, atrapalhado, com perdas irrecuperáveis, já há muito anunciadas, porém só agora concretizadas; outras perdas que, na verdade, serão ganhos, e promessas de ventos desconhecidos. Eu preciso velejar!
Venha ano novo, venha ano bom.
Venha, tempo, traga seu peso, sua força.
Faça com que eu me lembre sempre de ser eu, e sempre de quem eu sou.
Senhor tempo que não pára, obrigada!
Você zera os seus ponteiros e começo a zerar os meus. E esse cheiro de recomeço no ar. Cheiro de novidade, visão de ciclos fechados, sentimento de feridas que não latejam mais.
Cheiro de mar, cheiro de 31 de dezembro, 0:00, olhando pro mar.
Iemanjá soprando amor ...
Cheiro de amor.
Amor que transborda, que é tão necessário. Amor.
Eu quero um ano novo, em que eu possa ser amante de tudo o que eu faça, e de todos que estiverem cá camigo.